segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Manifestação do mistério escondido.

Do Tratado contra a heresia de Noeto, de Santo Hipólito, presbítero.

(Cap. 9-12: PG 10, 815-919)

(Séc. III)


Manifestação do mistério escondido

Único é o Deus que conhecemos, irmãos, e não por outra fonte que não seja a Sagrada Escritura. Devemos, pois, saber o que ela anuncia e compreender o que ensina. Creiamos no Pai como ele quer ser acreditado; glorifiquemos o Filho como ele quer ser glorificado; e recebamos o Espírito Santo como ele quer se dar a nós. Consideremos tudo isso, não segundo nosso próprio arbítrio e interpretação pessoal, nem fazendo violência aos dons de Deus, mas como ele próprio nos ensinou pelas santas Escrituras.

Quando só existia Deus, e não havia ainda nada que existisse com ele, decidiu criar o mundo. Criou-o por seu pensamento, sua vontade e sua palavra; e o mundo começou a existir como ele quis e realizou. Basta-nos apenas saber que nada coexistia com Deus. Não havia nada além dele, só ele existia e era perfeito em tudo. Nele estava a inteligência, a sabedoria, o poder e o conselho. Tudo estava nele e ele era tudo. E quando quis e como quis, no tempo que havia estabelecido, manifestou o seu Verbo, por quem fez todas as coisas.

Deus possuía o Verbo em si mesmo, e o Verbo era imperceptível para o mundo criado; mas fazendo ouvir sua voz, Deus tornou-o perceptível. Gerando-o como luz da luz, enviou como Senhor da criação aquele que é sua própria inteligência. E este Verbo, que no princípio era visível apenas para Deus e invisível para o mundo, tornou-se visível para que o mundo, vendo-o manifestar-se, pudesse ser salvo. O Verbo é verdadeiramente a inteligência de Deus que, ao entrar no mundo, se manifestou como o servo de Deus. Tudo foi feito por ele, mas ele procede unicamente do Pai. Foi ele quem deu a lei e os profetas; e ao fazê-lo, impulsionou os profetas a falarem sob a moção do Espírito Santo para que, recebendo a força da inspiração do Pai, anunciassem o seu desígnio e a sua vontade.

O Verbo, portanto, se tornou visível, como diz São João. Este repete em síntese o que os profetas haviam dito, demonstrando que aquele era o Verbo por quem tinham sido criadas todas as coisas: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus; e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por ele e sem ele nada se fez (Jo 1,1.3). E, mais adiante, prossegue: O mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não quis conhecê-lo. Veio para o que era seu, os seus, porém, não o acolheram (Jo 1,10-11).

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Espiritualidade e Utopias Libertárias - Leonardo Boff





É um vídeo de formação. Por isso, precisa de tempo e atenção para ouvir até o fim.

Laudato Si’: introdução, estrutura e método (1/7)

Juventudes - Espiritualidade Libertadora

Alegria do Evangelho - Evangelii Gaudium

DO PACTO DAS CATACUMBAS A FRANCISCO

PACTO DAS CATACUMBAS (texto e narração)

sábado, 5 de outubro de 2019

O pastor seja discreto no silêncio, útil na palavra

Da Regra Pastoral, de São Gregório Magno, papa

(Lib. 2,4: PL 77,30-31)(Séc. VI)
O pastor seja discreto no silêncio, útil na palavra

Seja o pastor discreto no silêncio, útil na fala, para não falar o que deve calar, nem calar o que deve dizer. Pois da mesma forma que uma palavra inconsiderada arrasta ao erro, o silêncio inoportuno deixa no erro aqueles a quem poderia instruir. Muitas vezes, pastores imprudentes, temendo perder as boas graças dos homens, têm medo de falar abertamente o que é reto. E segundo a palavra da Verdade, absolutamente não guardam o rebanho com solicitude de pastor, mas, por se esconderem no silêncio, agem como mercenários que fogem à vinda do lobo.

O Senhor, pelo Profeta, repreende estes tais dizendo: Cães mudos que não conseguem ladrar (Is 56,10). De novo queixa-se: Não vos levantastes contra nem opusestes um muro de defesa da casa de Israel, de modo a entrardes em luta no dia do Senhor (Ez 13,5). Levantar-se contra é contradizer sem rebuços aos poderosos do mundo em defesa do rebanho. E entrar em luta no dia do Senhor quer dizer: por amor à justiça resistir aos que lutam pelo erro.

Quando o pastor tem medo de dizer o que é reto, não é o mesmo que dar as costas, calando-se? É claro que se, pelo rebanho, se expõe, opõe um muro contra os inimigos em defesa da casa de Israel. Outra vez, se diz ao povo pecador: Teus profetas viram em teu favor coisas falsas e estultas; não revelavam tua iniquidade a fim de provocar à penitência (Lm 2,14). Na Sagrada Escritura algumas vezes os profetas são chamados de doutores porque, enquanto mostram ser transitórias as coisas presentes, manifestam as que são futuras. A palavra divina censura aqueles que vêem falsidades, porque, por medo de corrigir as faltas, lisonjeiam os culpados com vãs promessas de segurança; não revelam de modo nenhum a iniquidade dos pecadores porque calam a palavra de censura.

Por conseguinte, a chave que abre é a palavra da correção porque, ao repreender, revela a falta a quem a cometeu, pois muitas vezes dela não tem consciência. Daí Paulo dizer: Que seja poderoso para exortar na sã doutrina e para convencer os contraditores (Tt 1,9). E Malaquias: Guardem os lábios do sacerdote a ciência; e esperem de sua boca a lei porque é um mensageiro do Senhor dos exércitos (Ml 2,7). Daí o Senhor admoestar por meio de Isaías: Clama, não cesses; qual trombeta ergue tua voz (Is 58,1).

Quem quer que entre para o sacerdócio, recebe o ofício de arauto, porque caminha à frente, proclamando a vinda do rigoroso juiz, que se aproxima. Portanto, se o sacerdote não sabe pregar, que protesto elevará o arauto mudo? Daí se vê por que sobre os primeiros pastores o Espírito Santo pousou em forma de línguas; com efeito, imediatamente impele a falar sobre ele aqueles que inunda de luzes.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

“Nós amamos porque Deus primeiro nos amou” (1 Jo 4,19).


“Para que n’Ele nossos povos tenham vida – Primeira Carta de João”.
Primeira Carta de São João. Mês da Bíblia. Setembro de 2019.
1. Introdução
Na Primeira Carta de São João (1 Jo), podemos distinguir três momentos principais: Luz (1,-2,28); Justiça – aquele que crê em Cristo e pratica a justiça e o amor-caridade é filho de Deus-  (2,26-4,6); Amor – Deus é amor (4,7-5,12).
2. Temas específicos
João trata de temas específicos, alguns desenvolvidos por ele em seu Evangelho.
2.1. A doutrina sobre Jesus Cristo – para João, Jesus Cristo é o modelo, ele é a Palavra da Vida (ou a Palavra que gera vida). Esse Jesus não é espírito, é de carne e osso: “que nossas mãos apalparam”.
2.2. Encarnação - Ele destaca a veracidade da encarnação, contesta a ideia de que Jesus fosse apena espírito. Cem anos após a ressurreição, é claro que começariam a surgir contestações da existência do Jesus histórico. Sendo João o último apóstolo a morrer, e tendo sido testemunha ocular, somente ele poderia dizer “que nossas mãos apalparam”.
2.3. A doutrina do fim – Aquilo que se dará na parusia, fim dos tempos, João destaca que o somos, “filhos de Deus”. Não precisamos esperar o fim. Já somos filhos aqui. E como tal, devemos seguir os mandamentos de Deus.
2.4. Sobre a Igreja – Ela representa a unidade entre o que é místico (união com Deus) e a prática (amor aos irmãos).
2.5. Cristão – São todas e todos. Filhos que se amam como irmãos. Que se reconhecessem como tal e não há necessitados/necessitadas.
3. O Mês da Bíblia
A proposta da CNBB não é só um estudo teórico, teológico, racional de um livro ou tema. A Igreja no Brasil nos chama a aprofundarmos, na oração e meditação da Palavra Escolhida, a própria vida. Como nos relacionamos com Deus e como isso se transforma em ações para com o próximo.
Sendo assim, proponho alguns textos para sua oração e meditação pessoal. Confronte sua vida com a Palavra de Deus.

- 1,3 – unidade entre o Pai, o Filho e a Pessoa (Igreja).
- 1,5b-6 – Deus é luz. Nele não há trevas. Se estamos em Deus, não podemos ter atitudes de escuridão.
- 1,8-10 – Eu e o pecado. Perdão. Se dissermos que não temos pecados,
- 2,3-5 – Se amamos a Deus, cumprimos os seus mandamentos.
- 2,9-11 – Luz x Ódio.
- 2,15-17 – Mundo x Amor X Pai
-2,22-23 – Quem é mentiroso?
- 3,1 – Somos filhos de Deus.
- 3,8c – Filho de Deus – destruir as obras do diabo.
- 3,10 – Quem são os Filhos de Deus, e quem são os filhos do diabo.
- 3,14c-17 – Amar o irmão, reflexo do amor a Deus.
- 3,18.23 – Amar com obras.
- 4,6 – Espírito da Verdade x espírito do erro.
- 4,7-8 – Quem não ama, não conheceu a Deus.
- 4, 11.16b.18.20-21 – Amar-nos uns aos outros.
- 5 – Crer em Deus, no Filho ajudar o irmão.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Sobre Ágatha (genocídio da população negra) e o estado do Estado.

Sobre Ágatha (genocídio da população negra) e o estado do Estado
Por: padre Gegê

Domingo passado(22/09) tive no velório de Agatha (Inhaúma) e depois partir para o velório e sepultamento dos angolanos, Bilongo Lando Domingos e seu pequenino filho, Gabriel Kaleb Bilongo, vitimas do incendio no apartamento em Higienópolis. Tive, pois, contato na ordem ancesrral/espiritual com três corpos negros que, por razões distintas, baixaram sepultura. E todos e todas sempre morremos um pouco nas dores, nos "ais" e nos gritos de nossa gente. Como não se identificar?  Desejo à família de Bilongo e Gabriel, que pude visitar dias antes do sepultamento, toda força ancestral. No mesmo espírito, abraço afetuosamente meus irmãos e irmãs de Angola. Quando em Inhaúma falei brevemente com a mãe de Agatha. E o que agora escrevo faço na memória do momento que contemplei a face imóvel da bela menina cujo nome quer dizer "boa, perfeita, virtuosa e respeitada". Desse modo, falar Ágatha é mais que pronunciar um nome; é dizer da identidade profunda, dos desejos e projetos de uma coletividade, historicamente massacrada e sistematicamente executada. Aos 23 de fevereiro do corrente ano defendi na Pontificia Universidade Católica de São Paulo, no âmbito da ciência da religião, a tese de doutorado sobre Abdias do Nascimento(1914-2011), um dos maiores lutadores do Brasil na defesa da população negra. Lamentavelmente, sua obra "O genocídio da polupação negra brasileira:processo de um racismo mascarado", reeditada em 2017, é atualíssima. Sou padre há 25 anos e há dezesseis exerço o ministério sacertodal em Higienópolis/Manguinhos. Sou formado em psicologia (PUC-RJ), com especialização em teoria junguiana(IBMR). Nesse contexto de barbárie declarada, não posso deixar de testemunhar, pelo que ouço, vejo e sinto, que o programa de (in)segurança pública do atual   governador segue tipificado, acrítica e obstinadamente, pela psicologia do terror e pela política do abate. E tal política mata e adoece, quase sempre, tanto a população negra, favelada e de perifera quanto inúmeros políciais (em especial, os "despatenteados"), muitos dos quais, igualmente, negros e pobres.
Desse modo, a morte de Ágatha está inserida num contexto mais amplo e complexo de racismo mascarado e programa genocida. Diz soluçando o pai de Ágatha  no programa de Fátima Bernardes: "GOVERNADOR, MUDE ESSA   POLÍTICA DE ATIRAR!". Witzel, no entanto, indiferente à dor, diz que "o Estado não pode parar". Completo: parar de matar... Escreve o teólogo Leonardo Boff: "Temos como governador do Rio, Witzel, uma mente assassina que se diverte atirando de helicóptero sobre a população de favela em Angra". Clarice Lispector adverte numa entrevista falando sobre o conto "Mineirinho" (menino executado pela polícia com treze tiros) que  a vontade de matar constituiu a razão das 13 balas. Nesse sentido, não basta falar do número dos executados(estatística) desconsiderando razões históricas e políticas (genocídio); mas também não podemos neglicenciar pulsões  inconscientes (psique) que podem destruir - com gozo - coletividades. Adverte Martin Luther King Jr: "Nunca se esqueça que tudo que Hitler fez na Alemanha era legal". 
Dessa feita, com base na alarmante fala do ilustre teolólogo Leonardo Boff e  do conto de Clarice Lispector, pode-se, oportuna, justa e devidamente, perguntar: o Estado sente prazer com a dor preta e pobre?
É sádico o governador?
Psicologicamente, qual é o estado do Estado?

domingo, 22 de setembro de 2019

Os cristãos enfermos

Do Sermão sobre os pastores, de Santo Agostinho, bispo

(Sermo 46,13: CCL 41,539-540)
(Séc. V)

Ao enfermo, diz o Senhor, não fortificastes (Ez 34,4). Diz aos maus pastores, aos pastores falsos, que buscam seu interesse, não o de Jesus Cristo. Aos que se alegram com as dádivas do leite e da lã, mas descuram totalmente as ovelhas e não cuidam das doentes. Parece-me haver diferença entre enfermo e doente – pois costuma-se chamar de enfermos os doentes; enfermo quer dizer não firme, e doente o que se sente mal.Na verdade, irmãos, esforçamo-nos de algum modo por distinguir estas coisas, mas talvez com maior aplicação poderíamos nós ou outro mais entendido e com o coração mais cheio de luz discernir melhor. À espera disto, para que não sejais privados em relação às palavras da Escritura, falo o que penso. É de se temer sobrevenha uma tentação ao enfermo que o debilite. O doente, ao contrário, já adoeceu por alguma ambição e por esta ambição se vê impedido de entrar no caminho de Deus, de submeter-se ao jugo de Cristo.Observai esses homens que desejam viver bem, já decididos a viver bem. São, no entanto, menos capazes de suportar os males do que fazer o bem. Pertence à firmeza do cristão não apenas fazer o bem, mas também tolerar os males. Aqueles, pois, que parecem ardentes nas boas obras, mas não querem ou não podem suportar as provações iminentes, estes são enfermos. Por outro lado, aqueles que amam o mundo e por qualquer desejo mau se afastam até das obras boas, jazem gravemente doentes, visto que pela doença, sem forças, nada de bom podem realizar.
O paralítico era um destes, na alma. Os que o carregavam, não podendo levá-lo até junto do Senhor, descobriram o teto e fizeram-no descer. É isto que terias de fazer: descobrir o teto e colocar junto do Senhor a alma paralítica, com todos os membros frouxos, e vazia de obras boas, curvada sob o peso dos pecados e doente com o mal de sua cobiça. Portanto, se todos os seus membros estão frouxos e há paralisia interior para levá-la ao médico – talvez o médico esteja escondido no teu interior: seria este um sentido oculto nas Escrituras – se queres descobrir-lhe o que está oculto, descobre o teto e faze descer diante dele o paralítico.A quem assim não procede e desdenha fazê-lo, ouvistes o que lhe dizem: Aos doentes não fortalecestes, ao fraturado não pensastes (Ez 34,4); já explicamos esta passagem. Estava alquebrado pelo terror das provações. Mas surge algo que restaura a fratura, estas palavras de consolo: Fiel é Deus que não permitirá serdes tentados além do que podeis suportar, mas com a tentação vos dará o meio de sair dela para que a possais suportar (1Cor 10,13).

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

O QUE ESTÁ PERDIDO EM MEU INTERIOR?

(Texto do Pe. Adroaldo Palaoro,sj)

“Encontrei a minha ovelha que estava perdida”; “encontrei a moeda que tinha perdido”; “este teu irmão estava perdido, e foi encontrado”.

As três parábolas deste domingo, relatadas por Lucas, condensam toda a história de nossa salvação. Elas contém a quinta-essência do Evangelho do Reino do Pai, proclamado por Jesus, ou seja, a história do amor de Deus para com a humanidade. Justamente por serem o Evangelho condensado, as parábolas contadas por Jesus devem ser incessantemente escutadas e contempladas por todos nós. E, depois de contempladas e experimentadas, devemos contá-las, proclamá-las e testemunhá-las, sempre de novo, a todos os homens e mulheres que Deus ama.

Elas são as parábolas da nossa vida, da nossa história, de cada um dos nossos caminhos.
Elas são as parábolas da nossa origem e do nosso destino.

As três parábolas da misericórdia são, na verdade, as “parábolas dos perdidos”.
O que Jesus quis proclamar, ao contá-las, foi revelar a nova imagem do Deus Pai/Mãe que, movido pelo seu amor, misericórdia, perdão, sai ao encontro dos que estão “perdidos”. As três parábolas expressam, com uma força insuperável, dois temas particularmente caros a Lucas e vinculados entre si: o tema da misericórdia e do perdão oferecidos por Deus aos pecadores, a todos os “perdidos”, e o tema da alegria do mesmo Deus quando os perdidos são encontrados.

A trama das três parábolas é a expressão de que vivemos permanentemente banhados pela misericórdia reconstrutora de Deus, e que se expressa no perdão contínuo. Jesus, nestas parábolas, nos revela que Deus vai aonde nunca antes ninguém se atrevera ir, acompanhando-nos com sua presença, aproximando-se de nós e nos convidando à festa do seu perdão, com uma misericórdia sem fim. 

As três parábolas também revelam o caráter de defesa, feito pelo próprio Jesus, do seu modo de vida, do seu comportamento, particularmente do seu relacionamento com os extraviados e excluídos. O Evangelho que Jesus proclama com palavras e ações é a Boa Nova da salvação para os perdidos; e é, ao mesmo tempo, apelo à conversão dirigido aos que se consideravam “justos”, mas se fechavam ao amor e ao perdão.

O que escandalizava os destinatários das três parábolas, que se consideravam justos e cumpridores exemplares da lei de Deus, não era propriamente a conduta dos pecadores, mas a conduta do próprio Jesus com relação a eles: permitia que os pecadores se aproximassem dele, recebia-os de coração aberto, tomava a iniciativa de ir ao encontro deles e sentava-se com eles à mesma mesa.

O comportamento de Jesus é uma “parábola viva” do comportamento de Deus com os pecadores. Os escribas e fariseus não podiam suportar que Jesus proclamasse o Deus que acolhe e perdoa incondicionalmente a todos, que tem um carinho especial e um amor de predileção pelos perdidos; um Deus que sai ao encontro dos perdidos e que transborda de alegria quando os encontra.

Esse Deus “novo” anunciado por Jesus era um Deus “desconcertante”, “escandaloso”, totalmente incompatível com o “deus legalista” dos escribas e fariseus. Por isso, a pregação e o comportamento de Jesus eram intoleráveis para eles. As três parábolas nos revelam os sentimentos e as ações do “Abba de Jesus” com relação aos filhos perdidos. Revelam-nos um Deus cheio de ternura e de misericórdia que vai ao encontro dos perdidos, libertando-os da exclusão e do isolamento; um Deus que exulta de alegria quando os reencontra e que convida a todos para a festa da comunhão e da alegria pelo seu retorno. 

As três parábolas de Lucas nos permitem também fazer uma leitura em “chave de interioridade”, ou seja, “o quê está perdido, rejeitado, escondido... dentro de mim”? Os entendidos em restauração de obras de arte sabem que não se trata de voltar a pintar de novo a obra em questão. Nem sequer refazê-la, com outras cores, o que parece que está perdido. Um bom restaurador procura limpar com delicadeza e paciência cada detalhe do quadro, com a única pretensão de trazer de novo à luz o mais original da obra. Isto é o que Deus faz conosco, através de sua misericórdia. Limpa-nos com delicadeza em cada esquina e dobra de nosso coração. A misericórdia de Deus atua para que venha à
luz o mais original que há em nós. Somos filhos(as) de um Deus que é todo bondade e amor. Somos obras de arte restauradas pelo amor ativo de Deus.Viver a experiência da misericórdia é deixar-nos reconstruir por um amor que nos oferece a possibilidade de sentirmos novamente como filho e filhas de Deus. 

Precisamos, como Deus, tomar iniciativa, aprender a nos aproximar daquilo que está perdido e desgarrado em nós, sem julgamentos e sem moralismos. Aproximar-nos, acolher, abraçar, colocar nos ombros, tudo o que foi rejeitado e excluído, para pacificar nossa interioridade. Tudo aquilo que consideramos “perdido” (fragilidades, feridas, traumas, fracassos, crises...) tem algo a nos
revelar. Nada pode ser rejeitado, tudo deve ser acolhido pois tudo compõe a nossa história de vida. Precisamos fazer as pazes com o que foi reprimido e afastado e que continua gerando um mal-estar interior. O diálogo com as ovelhas desgarradas, as moedas perdidas e o filho pródigo, significa dirigir a atenção para as áreas reprimidas de nossa condição humana e que foram excluídas porque centramos forças em alimentar nossas imagens aureoladas e ideais exagerados, dominados pelo desejo de sermos perfeitos e infalíveis (fariseus e mestres da lei). Acolher e integrar tudo o que é humano (também o que está afastado dentro de nós) é a condição para a verdadeira experiência de Deus.

O encontro com o que está perdido em nosso interior é oportunidade para nos lançarmos por inteiros nos braços misericordiosos de Deus. Pois Ele vem ao nosso encontro em nossas carências e fraquezas; Ele nos procura através de nossos fracassos, de nossas feridas, de nossas limitações... Deus serve-se do que está perdido em nós para abraçar-nos carinhosamente. 

Portanto, o caminho para a integração e alegria interior passa pelo encontro e acolhida de tudo aquilo que foi rejeitado, reprimido e excluído dentro de nós, consumindo muita energia. A espiritualidade das parábolas de Lucas nos mostra que é exatamente em nossas feridas onde Deus encontra mais facilidade para entrar em nossas vidas e reconstruir nossa identidade verdadeira: filhos e filhas amados(as) com um “amor em excesso”. “Lá onde nós fomos feridos, onde nos quebramos, aí nós também nos abrimos para Deus” (H. Nouwen)

Poderíamos nos interrogar: o que é que Deus deseja nos revelar por meio daquilo que está “perdido” em nós? Procurar e buscar o que está “perdido” em nossa casa interior significa “buscar e encontrar a Deus” exatamente em nossas paixões, em nossos traumas, em nossas feridas, em nossos instintos, em nossa impotência e fragilidade...

Viver uma nova espiritualidade significa, então, não buscar “ideais de perfeição”, mas dialogar com a “vida perdida” e que deseja retornar ao lar, espaço do amor misericordioso. A partir da experiência da misericórdia podemos reunir em nosso redil, em nossa casa, tudo o que se afastou e se perdeu. Daqui poderá brotar nova possibilidade de vida, mais leve e mais humana. 

domingo, 8 de setembro de 2019

"Se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!"

Naquele tempo: 25Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse: 26'Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo. 27Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo. 28Com efeito: qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, 29ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30'Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!' 31Ou ainda: Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? 32Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz. 33Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!' (Lc 14,25-33)

Exigência para seguir Jesus: não se apegar a nada, "amar a Deus sobre todas as coias". 
A leitura de hoje é interessante. A multidão é o lugar do esconderijo. Ou seja, na multidão não somos reconhecidos. Somos mais um. Não temos identidade. Na multidão podemos ser o que quisermos ser sem sermos notados. A multidão representa aquilo que fazemos de forma de mecânica é não somos corregidos. A multidão representa nossas relações cotidianas, aquelas que se não agimos como as pessoas esperam somos criticados.
Jesus tem uma proposta diferente. Jesus quer dar identidade a cada um de nós. Jesus quer nos fazer diferentes daquilo que a sociedade espera da nós. Nossas ações devem ser diferentes daquelas que a "multidão" espera de nós.
A primeira atitude de quem quer sair da multidão é desapegar-se das coisas. Das pessoas. Ser discípulo é assumir riscos. É ser arauto da justiça divina. É viver de um novo jeito. 
Segundo, é tomar a sua própria cruz. É viver as suas dificuldades do dia-a-dia, confiando em Deus. 
Terceiro, é preciso calcular, medir o seguimento. Sair da multidão tem exigências que precisamos saber se estamos dispostos a vivê-las.
Para ser discípulo, para sair da multidão é preciso renunciar a tudo.
Essa é a sabedoria de quem quer ser discípulo. Renunciar.

domingo, 1 de setembro de 2019

"Para o mal do orgulhoso não existe remédio"

Lucas 14,1.7-14
1 Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam. 7 Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares. Então contou-lhes uma parábola: 8'Quando tu fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu, 9 e o dono da casa, que convidou os dois, venha te dizer: 'Dá o lugar a ele'. Então tu ficarás envergonhado e irás ocupar o último lugar. 10 Mas, quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar. Assim, quando chegar quem te convidou, te dirá: 'Amigo, vem mais para cima'. E isto vai ser uma honra para ti  diante de todos os convidados. 11 Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado.' 12 E disse também a quem o tinha convidado: 'Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. 13 Pelo contrário, quando deres uma festa,convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. 14 Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos.'
O texto de Lucas tem vários simbolismos que podem nos fugir a compreensão.
Primeiro, fala que o fato ocorreu num dia de sábado, ou seja, dia santo para os judeus. Jesus fora comer na casa de um fariseu. Quem seria esse fariseu para convidar Jesus para uma refeição religiosa? Isso não importa para Lucas. O evangelista quer destacar a ação de Jesus e a ação do fariseu. O texto diz que os fariseu observavam Jesus.E Jesus observa a atitude dos convidados. 
Todos sempre queremos ocupar os melhores. Os lugares de destaque.Os primeiros lugares.
Ao observar essa atitude "farisaica", Jesus conta uma breve história (parábola). O que importa aqui é "quem sua eleva será humilhado, quem se humilha,será elevado".
Notemos que Jesus sugeri que sejam convidados aqueles que são considerados pecadores, coxos, aleijados, cegos, pobres. Jesus inverte o entendimento social de quem entrará no Reino de Deus. E assim, receberás a recompensa no Reino dos Justos. E mais uma realidade, justo é aquele que acolhe os excluídos, os aleijados, coxos, cegos, bem como outras pessoas consideradas excluídas pelos fariseus. Quem são os rejeitados de nosso tempo? Quem são as pessoas que discriminamos porque não são "iguais" a nós? 
Pensemos não nos lugares, mas nas pessoas que discriminamos.
Lembremos, "na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade" (Eclo 3,20). "É aos humildes que ele revela seus mistérios". E ainda mais, "Para o mal do orgulhoso não existe remédio, pois uma planta de pecado está enraizada nele, e ele não sabe".

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Não entrareis no Reino dos Céus.

1Os discípulos aproximaram-se de Jesus e  perguntaram: 'Quem é o maior no Reino dos Céus?' 2Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles 3e disse: 'Em verdade vos digo, se não vos converterdes, e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. 4Quem se faz pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. 5E quem recebe em meu nome uma criança como esta, é a mim que recebe. 10Não desprezeis nenhum desses pequeninos, pois eu vos digo que os seus anjos nos céus vêem sem cessar a face do meu Pai que está nos céus. 12Que vos parece? Se um homem tem cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixa ele as noventa e nove nas montanhas, para procurar aquela que se perdeu? 13Em verdade vos digo, se ele a encontrar, ficará mais feliz com ela, do que com as noventa e nove que não se perderam. 14Do mesmo modo, o Pai que está nos céus não deseja que se perca nenhum desses pequeninos. (Mt 18,1-5.10.12-14) . 

REFLEXÃO: Desejo humano ser o maior, ser o primeiro, estar em posição de destaque. Jesus coloca uma criança no meio dos discípulos. Para nós, a criança é símbolo de humildade, de pureza. Entretanto, para os judeus a criança não tinha valor algum. Não era nem contada. Se não nos considerarmos nada diante de Deus, não estaremos aptos ao Reino dos Céus. O maior no Reino é o que é desprezível para esse mundo. Para se entrar no Reino dos Céus, é preciso acolher aqueles que são desprezados. Os excluídos. Os invisíveis. Os refugiados. Os perseguidos. Quem acolhe uma dessas pessoas em nome de Jesus, é ao próprio Jesus que recebe. Outro assunto, o valor dado às coisas. Perder uma ovelha era perder muito dinheiro. Cada ovelha tinha um valor estimado. Por isso, todo esforço para encontrar a ovelha perdida. E nós? Temos uma valor inestimado para Deus, tanto que Jesus dá a sua vida pelo alto preço do nosso resgate. Não sejamos causa de queda para os pequeninos.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa

Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo
(Sermo 103, 1-2. 6: PL 38, 613.615)(Séc.V)

As palavras de nosso Senhor Jesus Cristo nos advertem que, em meio à multiplicidade das ocupações deste mundo, devemos aspirar a um único fim. Aspiramos porque estamos a caminho e não em morada permanente; ainda em viagem e não na pátria definitiva; ainda no tempo do desejo e não na posse plena. Mas devemos aspirar, sem preguiça e sem desânimo, a fim de podermos um dia chegar ao fim.
Marta e Maria eram irmãs, não apenas irmãs de sangue, mas também pelos sentimentos religiosos. Ambas estavam unidas ao Senhor; ambas, em perfeita harmonia, serviam ao Senhor corporalmente presente. Marta o recebeu como costumam ser recebidos os peregrinos. No entanto, era a serva que recebia o seu Senhor; uma doente que acolhia o Salvador; uma criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento corporal, ela que precisava do alimento espiritual. O Senhor quis tomar a forma de servo e, nesta condição, ser alimentado pelos servos, por condescendência, não por necessidade. Também foi por condescendência que se apresentou para ser alimentado. Pois tinha assumido um corpo que lhe fazia sentir fome e sede.
Portanto, o Senhor foi recebido como hóspede, ele que veio para o que era seu, e os seus não o acolheram. Mas, a todos que o receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,11-12). Adotou os servos e os fez irmãos; remiu os cativos e os fez co-herdeiros. Que ninguém dentre vós ouse dizer: Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa! Não te entristeças, não te lamentes por teres nascido num tempo em que já não podes ver o Senhor corporalmente. Ele não te privou desta honra, pois afirmou: Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).
Aliás, Marta, permite-me dizer-te: Bendita sejas pelo teu bom serviço! Buscas o descanso como recompensa pelo teu trabalho. Agora estás ocupada com muitos serviços, queres alimentar os corpos que são mortais, embora sejam de pessoas santas. Mas, quando chegares à outra pátria, acaso encontrarás peregrinos para hospedar? encontrarás um faminto para repartires com ele o pão? um sedento para dares de beber? um doente para visitar? um desunido para reconciliar? um morto para sepultar? Lá não haverá nada disso. Então o que haverá? O que Maria escolheu: lá seremos alimentados, não alimentaremos. Lá se cumprirá com perfeição e em plenitude o que Maria escolheu aqui: daquela mesa farta, ela recolhia as migalhas da palavra do Senhor. Queres realmente saber o que há de acontecer lá? É o próprio Senhor quem diz a respeito de seus servos: Em verdade eu vos digo: ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá (Lc 12,37).

quinta-feira, 20 de junho de 2019

CORPO DO CRISTO: CORPO HUMANO


“Jesus acolheu as multidões, falava-lhes do Reino de Deus e curava todos os que precisavam” (v. 11)
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ

O dia de “Corpus Christi”, tradicionalmente celebrado na quinta-feira depois da Trindade, é festa do Deus feito carne e sangue humano, é festa cristã da humanidade de Deus, da divindade do ser humano.
Esta festa revela mil riquezas que deveriam ser realçadas no diálogo com a humanidade, afinal, o Corpo de Deus é, por Cristo, o ser humano inteiro, a humanidade completa; é festa cristã, mas que quer ser universal, a festa de todos aqueles que desejam vincular-se entre si, de um modo concreto, partilhando o pão, bebendo juntos o vinho da vida, em alegria e esperança, dispostos a colocar suas vidas a serviço da vida.
Festa do Corpo de Jesus e de todos os corpos; festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivento; o Universo, com suas estrelas e galáxias, é um corpo imenso. Corpo sagrado, porque habitado pela presença divina.
Celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e vulnerável! Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos! Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem explorá-los! Sintamos como próprio o corpo do faminto, do violentado, do refugiado, da mulher violada, maltratada, assassinada... É nosso corpo; é o Corpo de Jesus; é o Corpo de Deus.

O corpo humano está, portanto, no centro da revelação cristã, pois se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo, que se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para sempre, já que a divindade abraça a carne, acolhendo sua fragilidade para dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um Corpo que sente, que vibra, que tem prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e morte, sendo sepultado entre as trevas da terra como toda criatura.
Frente a um contexto social e político que faz opção clara em favor da morte, os(as) seguidores(as) de Jesus proclamam em alta voz seu compromisso em favor da vida. É uma incoerência tremenda realçar o espírito da festa de Corpus Christi quando corpos são violentados, multidões são expostas à fome e miséria, pessoas e grupos são excluídos por preconceito, intolerância...
Sim, “Corpo de Deus”! Deus é como o pulsar íntimo, a energia originária, a criatividade inesgotável, a possibilidade infinita, a força do bem, a comunhão universal, a Presença plena em cada ser humano, numa eterna evolução; Deus é infinitamente “mais” que a soma de todos os corpos que compõem a humanidade. Somos n’Ele. Ele é em nós, infinitamente mais que um Tu separado. Toma corpo no trigo que se transforma em pão ou na vinha que floresce nos campos e se transforma em vinho; corpo que se faz alimento e alegra o coração, na promessa de nos re-conduzir às entranhas do amor do mesmo Deus.

Jesus fez do universo seu corpo e se faz pão e vinho para nós.
O pão suscita e cria Corpo…; Jesus não anuncia uma verdade abstrata, separada da vida, uma pura lei social, princípio religioso... Ao contrário, Jesus, Messias de Deus, é corpo, isto, é, vida expandida, sentida, compar-tilhada. O Evangelho nos situa desta forma no nível da corporalidade próxima: Jesus é corpo que quebra distâncias, acolhe o diferente e cria comunhão. Podemos dizer que Jesus desencadeia um “movimento corporal humanizador”; por isso, Ele se faz alimento que a todos sustenta, criando uma comunhão corpórea universal, pois ninguém está excluído.
Sabemos que o corpo é identidade e comunhão, individualidade e comunicação, a vida inteira alimentada pelo pão.  A antropologia de Jesus não é dualista, que separa corpo e alma. A festa do Pão divino está nos revelando que corpo não é aquilo que se opõe à alma, exterioridade da pessoa, mas pessoa e vida inteira.
Corpo é o mesmo ser humano enquanto comunicação e crescimento, exigência de alimento e possibilidade de morte: fragilidade e grandeza de alguém que pode viver o encontro com o outro, partilhando sua vida e suas energias, criando assim um “corpo” mais alto (comunhão) com todos.

Nesse sentido, a Eucaristia se revela como centro da vivência cristã. A transformação das relações humanas se dá através do partir o pão e do passar o cálice de vinho; como o pão é um, comer desse pão nos faz todos um. A Eucaristia faz de todos nós Corpo de Cristo. Daí o interesse da primitiva Igreja em que, na Eucaristia, todos comungassem do mesmo pão partido, com a finalidade de fazer visível essa unidade de todos.
Ao dizer “tomai e comei, isto é meu corpo”, Jesus vem ao nosso encontro como alimento; não vive para impor-se sobre os outros ou explorá-los, mas, pelo contrário, para oferecer sua vida em forma de alimento, a fim de que todos se alimentem e cresçam com Sua vida.
Tudo isto se expressa e se oferece em contexto de refeição entre amigos(as): não exige obediência, não impõe sua verdade, não se eleva acima dos outros, mas, em gesto de solidariedade suprema, se atreve a oferecer-lhes seu próprio corpo, convidando-os a partilhar o pão. Este oferecimento de Jesus só tem sentido para aqueles que interpretam o corpo messiânico, como fonte de humanidade dialogal, gratuita, expansiva...
Assim fizeram seus(suas) seguidores(as): após a Ressurreição, Jesus foi “reconhecido ao partir o pão”; foi reconhecido não porque estava no templo ou ensinava na sinagoga, mas porque partia o pão nas casas.
Por isso, no primeiro dia da semana, reuniam-se todos nas casas, oravam juntos, recordavam a mensagem de Jesus, comiam o pão, bebiam o vinho e a Vida ressuscitava. A isso chamavam, ‘ceia do Senhor” ou “fração do pão”.  Tudo era muito simples e despojado.

Segundo os relatos dos Evangelhos, durante sua vida pública, Jesus transitou por muitas refeições, propôs a grande mesa da inclusão e, para culminar, organizou com seus amigos mais próximos uma ceia de despe-dida e de esperança. Ali, ao partir o pão e passar o cálice, pediu que se recordasse dele toda vez que comes-sem ou bebessem juntos, reavivando a esperança de construir o mundo que todos esperavam. Eles se transfigurariam e o mundo se transformaria em Comunhão toda vez que este gesto fosse repetido.
Para isso, é preciso recuperar o lugar e o sentido da Eucaristia, para que não seja um rito puramente cultual. Para muitos cristãos, ela não é mais que uma obrigação e um peso que, se pudessem, tirariam de cima deles. A Eucaristia acabou se convertendo em uma cerimônia rotineira, que demonstra a falta absoluta de convicção e compromisso. A Eucaristia era, para as primeiras comunidades cristãs, o ato mais subversivo que podemos imaginar. Os cristãos que a celebravam se sentiam comprometidos a viver o que o sacramento significava. Eram conscientes de que recordavam o que Jesus tinha sido durante sua vida e se comprome-tiam a viver como Ele viveu.
Séculos depois, a simples refeição foi se complicando. A casa se converteu em templo, a refeição em “sacrifício”, a mesa em altar, o convite em obrigação, o rito em pompa, a partilha em exclusão...
A festa de “Corpus Christi” pode ser ocasião privilegiada para voltarmos ao mais simples e pleno, para além dos cânones, rubricas e indumentárias que não tem nada a ver com Jesus.
Basta nos reunir em um lugar qualquer, para recordar Jesus, compartilhar sua palavra, tomar o pão e o vinho, ressuscitar a esperança e alimentar o sonho do Reino.
Essa é a Missa verdadeira, a verdadeira missão.

Texto bíblico:  Lc 9,11-17

Na oração: Na su a comunidade, a celebração eucarística geramaior amor e compromisso em favor dos mais pobres ou se limita a ser um simples rito religioso obrigatório?
- Quais iniciativas concretas sua comunidade poderia fazer para que a participação na Eucaristia seja mais ativa e dinâmica?
- Sendo constituída por seguidores(as) de Jesus, como sua comunidade poderia se comprometer mais para levar aos outros o pão cotidiano, o pão do amor e da esperança, o pão do evangelho do Reino?

domingo, 2 de junho de 2019

Uma experiência mística!

A humanidade sempre se pautou pelas experiências místicas. A relação com o que não se vê, mas se percebe, faz parte da essência humana. 
Não importa como aconteça essa experiência de relacionamento. Ela é pessoal, intransferível, contagiante.
A nossa humanidade e presa aos acontecimentos de aqui e agora. São reais os fatos que vemos, ouvimos, tocamos. Acrescento que nossa
realidade é gustativa e olfativa. Trazemos em nós memórias. E essas passam pelos nossos sentidos. Um som traz lembranças boas (ou não); ver alguém, um objeto, uma cena nos remete a momentos bons (ou não); um jeito de abraçar, de acariciar, de acarinhar, pode nos recordar coisas boas (ou não); um "cheiro" pode lembrar um boa comida, um bom perfume, uma situação boa (ou não); um gosto, um sabor, quantas lembranças carregamos quando provamos uma boa "guloseima".
Assim, é a nossa liturgia de hoje. Ela está recheada de sensações humanas vividas pelos apóstolos, e transmitidas a nós.
Na primeira leitura (At 1,1-11), Lucas diz que já havia narrado as ações de Jesus em seu primeiro relato, o evangelho. E que agora, ele vai contar como foi a vida daqueles que foram as testemunhas oculares do ocorrido após a morte, ressurreição e ascensão do Senhor.
Logo em seguida, Lucas narra uma refeição. Local repleto de memórias. De cheiros, de gostos, de visões, de "barulhos" de conversas, de toques. Na refeição nos deixamos envolver pelas histórias do passado, olhando para o presente, nos preparando para lançarmos para o futuro. É na mesa que se dá a entrega. É na refeição que se faz libertação. É na mesa que fazemos memória celebrativa.
À mesa, podemos falar das coisas da vida. Do dia-a-dia. Daquilo que nos incomoda. Daquilo que queremos mudar. Das nossas expectativas, das nossas esperanças, das nossas frustrações, tristeza.
É numa mesa, numa refeição, que os apóstolos querem saber se Jesus vai restabelecer o reino de Israel. Percebam, eles querem se colocar no lugar de Deus. Querem determinar o tempo das coisas. Mas, Jesus é claro, não cabe saber o tempo dos acontecimentos divinos. A nós, nos cabe apenas sermos testemunhas dos acontecimentos. O tempo de Deus é de Deus. A nós, revestidos do Espírito Santo, nos é dado o "ânimo" do testemunho. Revestir-se do Espírito Santo é aceitar com alegria as dificuldades e dores, sabendo que o Pai está pronto a nos restaurar, a nos dar a vida em Cristo, a nos ressuscitar com Cristo.
A experiência humana da divindade nos leva a uma percepção maior daquilo que podemos ver com os olhos humanos. Ela nos impulsiona para uma certeza de que Deus se faz presente em nossas vidas através do espírito que abre a mente para o entendimento daquilo que estava oculto, ou que não se via com a racionalidade apenas.
Só pode subir quem desceu. Só volta, quem foi a algum lugar. Os apóstolos veem Jesus ir aos céus. Mas, só chega ao céu se se vive a humanidade dada por Deus. Jesus se tornou humano. E na sua humanidade, sofrida, ele se entregou para nos dar uma "divindade" perdida no não de Adão e de Eva. 
Já é hora de partir. De anunciar. De sermos portadores de esperanças a todos e a todas que querem fazer a experiência mística do encontro com Deus. Do encontro com nossa humanidade. Do encontro com nós mesmos.
Aproveitemos a festa da Ascensão. Olhemos para dentro de nós mesmos. O que preciso fazer para ser um discípulo/discípula missionário/missionária?

quinta-feira, 16 de maio de 2019

"Quem recebe aquele que eu enviar, me recebe a mim"!

Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus lhes disse: 16Em verdade, em verdade vos digo: o servo não está acima do seu senhor e o mensageiro não é maior que aquele que o enviou. 17Se sabeis isto, e o puserdes em prática, sereis felizes. 18Eu não falo de vós todos. Eu conheço aqueles que escolhi, mas é preciso que se realize o que está na Escritura: 'Aquele que come o meu pão levantou contra mim o calcanhar.' 19Desde agora vos digo isto, antes de acontecer, a fim de que, quando acontecer, creais que eu sou. 20Em verdade, em verdade vos digo, quem recebe aquele que eu enviar, me recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou.' (João 13,16-20).

Esta perícope inicia-se com o fim da cena do lava-pés.Jesus faz uma relação entre servo e senhor, e mensageiro e aquele que o envia. Não podemos querer ser maior daquele que nos envia, nem do que aquele que nos diz o que falar.
Jesus nos chama a uma humildade que prega não aquilo que queremos dizer, mas o que é necessário ser dito. Não somos nós a figura central. O servo não é o Senhor. O servo não pode ser como o Senhor. Se isso acontece, a uma inversão de valores, e de verdades. 
O mensageiro fala daquilo que ouviu de quem o enviou. Ele ouve a voz, e proclama aquilo que o Senhor quer que seja dito. O mensageiro não pode se calar, nem inventar aquilo que não foi dito. O mensageiro é fiel a palavra, pois ele é ouvinte.
Quem ouve anuncia. Quem anuncia serve àquele que o enviou para proclamar a palavra.
Sejamos orantes da Palavra de Deus. Façamos a Lectio Divina. Sejamos servos da Palavra. Nossa pregação não pode ser vazia de humanidade, nem sem sentido de vida. A Palavra de Deus é vida. A Palavra de Deus está ao lado dos pobres, dos excluídos.
Sejamos ouvintes atentos. Sejamos mensageiros da verdade e da justiça. Não somos senhores, somos servos.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Meu espírito exulta em Deus meu Salvador!

O título de minha postagem é um trecho do cântico de Maria, mãe de Jesus. Está no evangelho de Lucas, capítulo 1, versículo 47.
É tão bonito ler e rezar essa perícope. Nos dá uma consolação e tanto.
Maria, inicialmente, glorifica a Deus, exalta seu nome. Nos faz ver que a sua humildade chamou a atenção de Deus.
Em seguida, ela afirma as gerações futuras hão de chamá-la de feliz, pois o poderoso realizou, através dela, grandes coisas; e por isso seu nome é santo e sua misericórdia não falta.
Depois da oração de louvor, de agradecimento, de reconhecimento de sua pequenez, mas da força que Deus lhe dá com misericórdia, ela descreve a ação de Deus na vida da humanidade.
Primeiro, Ele despreza, dispersa aqueles que tem planos malignos para com os seus filhos através da força de seu braço. Deus está ao lado dos humildes, dos perseguidos,dos excluídos. O Deus de Maria e de Jesus não está nos palácios, nas catedrais, nos templos suntuosos. Ele está ao lado dos humildes.
Segundo, Deus não está junto com os poderosos. Ele está com os despossuídos de poder, de influências políticas escusas. Deus eleva os humildes derrubando dos tronos, das cátedras, das mesas diretoras, dos espaços de poder corruptos, de presidências, os poderosos, ou aqueles que pensam tê-lo.
O Deus cantado por Maria sacia de bens os famintos. Aqueles que tem fome e sede de justiça. Aqueles que são promotores da paz. Ele alimenta os famintos e manda embora (despede) os ricos.
Maria, mãe de Jesus, é uma pequena jovem que está atenta aos sofrimentos dos pobres. Daqueles que se submetem a um mísero ou pouco salário para dar de comer a seus filhos/filhas. Maria é a mãe que chora o assassinato de um filho/filha. Maria é mãe que reza pelo filho/filha que se envereda pelas drogas, e principalmente, no mundo do crack. Maria é mãe que passa um noite inteira na porta de uma creche ou escolha para conseguir uma vaga para um filho/filha. Maria é a mãe que na calada da noite acorre a uma UPA, ou emergência para levar um filho/filha que não consegue respirar direito, ou está com febre, e descobre não haver médico/médica para fazer o atendimento. Maria é a mãe que se faz presente na porta de um presídio quanto tem notícias de alguma rebelião. Maria é a mãe que acolhe nos braços o filho/filha mortos pelas armas de fogo.
Mesmo nas dificuldade, Maria não perde a fé. Seus pés esmagam a cabeça da serpente. Ela sabe que Deus acolhe seus servos, pois sempre lembra de sua misericórdia.
Maria não se esconde dos sofrimentos do povo. Ela é mãe das Dores, do Desterro, do Socorro (perpétuo), dos Aflitos. Ela é a mãe de tantos sofrimentos que tenhamos na vida. E se fez mãe porque sabe que Deus está conosco, pois "se Deus é por nós, quem será contra nós"?

"As minhas ovelhas escutam a minha voz"!

No evangelho de João, capitulo 10, lemos o discurso de Jesus sobre ser o Bom Pastor. A perícope do dia 12 de  maio de 2019, 4º Domingo da Páscoa, trouxe esse texto. O evangelho proclamado nas missas compreendia os versículo de 27 a trinta.
Logo no início, Jesus diz que as suas ovelhas escutam sua voz. Escutar é estar atento aquilo que se fala. E partimos desse breve texto para refletirmos sobre o que Jesus diz para que fiquemos atentos a sua voz.
Apesar de termos quarto narrativas da atividade pública de Jesus, não podemos separa-la do conjunto. Cada evangelista escreveu para um determinada comunidade, levando em conta as necessidades espirituais e materiais dela. 
Assim, qual a voz de Jesus que se houvia? Lembro aqui dois momentos que me marcam muito (pode ser que surjam outros no decorre do texto) no evangelho do próprio João. Primeiramente, transformar água em vinho. A mudança de vida. De aguada à processada, transformada, motivadora de unidade, alegria e felicidade. Em seguida, o encontro com a Samaritana. Aquela que parte das coisas da terra para as coisas do céu. Ela, tal como os serventes, ouvem a voz de Jesus e lhe dão crédito. No primeiro caso, precisavam de vinho, mas levaram água. No segundo, "venham ver, ele falou tudo sobre minha vida". Deram crédito a Jesus.
E nós? Deixamo-nos envolver pela palavra de Jesus? Estamos atentos à sua voz? Estarmos na missa, rezarmos o terço, participarmos de grupos de oração e de círculos bíblicos nos faz diferentes?
Ouvir a voz de Jesus é ficar atento aos famintos, aos sedentos, aos nus, aos encarcerados, aos doentes, aos refugiados. Mas, é, ao mesmo tempo, questionar porque existem famintos, sedentos, nus, encarcerados, doentes abandonados, refugiados. Quais são as estruturas de poder que levam a isso?
E, ao mesmo tempo, nos sentirmos bem aventurados porque somos capazes de fazer a experiência de Deus.
O evangelho de hoje nos chama a sermos promotores da "Civilização do Amor".
Jesus é o Bom Pastor. Ele nos deu o exemplo para que possamos ser na vida dos que sofrem, dos que são excluídos, bons pastores também.
Sejamos cristãos que mudam as relações sociais. Que denunciam as injustiças. Que são contras as situações de morte que se nos colocam diante dos olhos.

terça-feira, 30 de abril de 2019

Conceitos e Pré-Conceitos

(Jo 3,7b-15)
Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: 7b“Vós deveis nascer do alto. 8O vento sopra onde quer e tu podes ouvir o seu ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece a todo aquele que nasceu do Espírito”. 9Nicodemos perguntou: “Como é que isso pode acontecer?” 10Respondeu-lhe Jesus: “Tu és mestre em Israel, mas não sabes estas coisas? 11Em verdade, em verdade, te digo, nós falamos daquilo que sabemos e damos testemunho daquilo que temos visto, mas vós não aceitais o nosso testemunho. 12Se não acreditais, quando vos falo das coisas da terra, como acreditareis se vos falar das coisas do céu? 13E ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem. 14Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, 15para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna”.

A leitura do evangelho de hoje nos leva a uma interessante reflexão, nossos preconceitos.
Nicodemos, homem letrado, figura importante do sinédrio, vai até Jesus para entender quem Ele era.
Jesus propõem a Nicodemos um jeito novo de olhar as coisas, "nascer do alto". Livrar-se daquilo que lhe prendia às coisas da terra, que faz olhar com os olhos da lei, e não do amor misericordioso de Deus.
A leitura de hoje nos leva a pensar nas coisas que nos prendem à terra e nos impede de olhar para o alto.
Vamos nos renovar. Buscar as coisas do alto. Nascer da água e do Espírito. Deus é Pai de todas e de todos.

domingo, 21 de abril de 2019

"A pedra tinha sido retirada do túmulo"!

João 20,1-9

1No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo. 2Então ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: 'Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o colocaram.' 3Saíram, então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo. 4Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo. 5Olhando para dentro, viu as faixas de linho no chão, mas não entrou. 6Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho deitadas no chão 7e o pano que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não posto com as faixas, mas enrolado num lugar à parte. 8Então entrou também o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo. Ele viu, e acreditou. 9De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos.

Ao olharmos o evangelho de hoje, nos deparamos com uma cena um tanto quanto inusitada. Uma mulher que vai a um túmulo se encontrar com um morto. 
A primeira vista, parece algo não comum para nós. Mas, a cena de hoje, deve ser vista de vários pontos.
Primeiro, o horário. O texto fala do primeiro dia semana. Para nós, seria a segunda-feira, o dia após o Domingo. Neste caso, fala-se do dia após o Sábado, dia sagrado para os judeus. Era a "primeira-feira". Um dia após o repouso religioso judaico. Um dia como outro qualquer. A vida diária logo logo voltaria ao normal. Mais um dia como outro qualquer.
A personagem principal, Maria Madalena, foi aquela da qual Jesus havia expulsado sete demônios (Lc. 8,2). 
É interessante observar porque João registra a presença de Madalena, e não de Maria, a mãe de Jesus, junto ao sepulcro naquela hora. Madalena havia sido libertada de sete maus espíritos. Tinha sido libertada da escravidão espiritual. Tinha tanto agradecimento a Jesus que a ideia de não tê-lo mais por perto lhe assustava internamente. Como seria a vida dela sem Jesus? 
Maria foi ao túmulo. Ainda pela madrugada. Muito cedo. Antes do raiar do sol. A marcação do tempo litúrgico judaico ia o por do sol da sexta-feira, até o nascer do sol no primeiro dia semana. Parece que ela "transgride" uma lei, tal como Jesus fez várias vezes.
Ela chega ao sepulcro. E se depara com uma visão inusitada, "viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo".
Assustada! Extasiada! Surpresa! Ela corre em direção aos apóstolos. Vai ao encontro de Simão Pedro. Procura por João, o novo filho da mãe de Jesus (ou o discípulo que Jesus amava).
Ainda sem compreender direito o que havia acontecido, ainda com os olhos humanos, ela diz que "tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram". Neste ponto, percebemos que ela não havia ido sozinha ao túmulo. Pois, ela diz "não sabemos". No plural. Havia outras pessoas que o evangelista não revela quem eram.
Pedro e os discípulos correram. Foram ao sepulcro. Deram crédito à Madalena. E foram verificar a notícia "in loco". Era preciso saber o que estava acontecendo. 
Um dos discípulo, que a teologia diz ser o próprio João, chegou primeiro que Pedro. Observem, é uma relação de amor. Primeiro, Madalena, como dissemos, da qual havia sido expulso sete demônios, e tinha muito amor por Jesus. Segundo, o discípulo que Jesus amava. Esses dois tinham pressa em saber o que estava acontecendo. E por último, chega aquele que havia negado, e que depois será confirmado no amor a Jesus e ao rebanho. A relação amorosa nos leva a esse encontro. Quanto mais amor, mais doação.
Ao chegarem ao túmulo, observam os panos que envolviam o corpo de Jesus à parte. 
O evangelista narra que eles foram embora para casa, pois ainda não tinham compreendido a Escritura (que dizia que Jesus deveria ressuscitar dos mortos).
Ao final de hoje, perguntamos, e nós compreendemos que Jesus ressuscitou dos mortos? E nós, cremos nas Escrituras? E nós, cremos num Deus que se fez ser humano, assumiu nossas dores, passou pela tortura, foi morto e sepultado? Cremos na ressurreição? Na volta à vida? De uma vida nova?
Eis o que celebramos hoje. A esperança na vida. Apesar das dores, das mortes, das torturas, das perseguições, a vida resiste, ela não é tragada pela morte. A vida renasce naqueles que denunciam as injustiças, e que anunciam a esperança.
Cristo Ressuscitou! Vive no nosso meio! Aleluia!

sexta-feira, 19 de abril de 2019

O poder do sangue de Cristo

Das Catequeses de São João Crisóstomo, bispo
(Cat. 3,13-19: SCh 50,174-177) 
(Séc.IV)

Queres conhecer o poder do sangue de Cristo? Voltemos às figuras que o profetizaram e recordemos a narrativa do Antigo Testamento: Imolai, disse Moisés, um cordeiro de um ano e marcai as portas com o seu sangue (cf. Ex 12,6-7). Que dizes, Moisés? O sangue de um cordeiro tem poder para libertar o homem dotado de razão? É claro que não, responde ele, não porque é sangue, mas por ser figura do sangue do Senhor. Se agora o inimigo, ao invés do sangue simbólico aspergido nas portas, vir brilhar nos lábios dos fiéis, portas do templo dedicado a Cristo, o sangue verdadeiro, fugirá ainda mais para longe.
Queres compreender mais profundamente o poder deste sangue? Repara de onde começou a correr e de que fonte brotou. Começou a brotar da própria cruz, e a sua origem foi o lado do Senhor. Estando Jesus já morto e ainda pregado na cruz, diz o evangelista, um soldado aproximou-se, feriu-lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu água e sangue: a água, como símbolo do batismo; o sangue, como símbolo da eucaristia. O soldado, traspassando-lhe o lado, abriu uma brecha na parede do templo santo, e eu, encontrando um enorme tesouro, alegro-me por ter achado riquezas extraordinárias. Assim aconteceu com este cordeiro. Os judeus mataram um cordeiro e eu recebi o fruto do sacrifício.
De seu lado saiu sangue e água(Jo 19,34). Não quero, querido ouvinte, que trates com superficialidade o segredo de tão grande mistério. Falta-me ainda explicar-te outro significado místico e profundo. Disse que esta água e este sangue são símbolos do batismo e da eucaristia. Foi destes sacramentos que nasceu a santa Igreja, pelo banho da regeneração e pela renovação no Espírito Santo, isto é, pelo batismo e pela eucaristia que brotaram do lado de Cristo. Pois Cristo formou a Igreja de seu lado traspassado, assim como do lado de Adão foi formada Eva, sua esposa.
Por esta razão, a Sagrada Escritura, falando do primeiro homem, usa a expressão osso dos meus ossos e carne da minha carne (Gn 2,23), que São Paulo refere, aludindo ao lado de Cristo. Pois assim como Deus formou a mulher do lado do homem, também Cristo, de seu lado, nos deu a água e o sangue para que surgisse a Igreja. E assim como Deus abriu o lado de Adão enquanto ele dormia, também Cristo nos deu a água e o sangue durante o sono de sua morte.
Vede como Cristo se uniu à sua esposa, vede com que alimento nos sacia. Do mesmo alimento nos faz nascer e nos nutre. Assim como a mulher, impulsionada pelo amor natural, alimenta com o próprio leite e o próprio sangue o filho que deu à luz, também Cristo alimenta sempre com o seu sangue aqueles a quem deu o novo nascimento.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

O Cordeiro imolado libertou-nos da morte para a vida

Da Homilia sobre a Páscoa, de Melitão de Sardes, bispo
(N.65-71: SCh123,94-100)
(Séc.II)

Muitas coisas foram preditas pelos profetas sobre o mistério da Páscoa, que é Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos dos séculos. Amém (Gl 1,5). Ele desceu dos céus à terra para curar a enfermidade do homem; revestiu-se da nossa natureza no seio da Virgem e se fez homem; tomou sobre si os sofrimentos do homem enfermo num corpo sujeito ao sofrimento, e destruiu as paixões da carne; seu espírito, que não pode morrer, matou a morte homicida.
Foi levado como cordeiro e morto como ovelha; libertou-nos das seduções do mundo, como outrora tirou os israelitas do Egito; salvou-nos da escravidão do demônio, como outrora fez sair Israel das mãos do faraó; marcou nossas almas com o sinal do seu Espírito e os nossos corpos com seu sangue.
Foi ele que venceu a morte e confundiu o demônio, como outrora Moisés ao faraó. Foi ele que destruiu a iniqüidade e condenou a injustiça à esterilidade, como Moisés ao Egito.
Foi ele que nos fez passar da escravidão para a liberdade, das trevas para a luz, da morte para a vida, da tirania para o reino sem fim, e fez de nós um sacerdócio novo, um povo eleito para sempre. Ele é a Páscoa da nossa salvação.
Foi ele que tomou sobre si os sofrimentos de muitos: foi morto em Abel; amarrado de pés e mãos em Isaac; exilado de sua terra em Jacó; vendido em José; exposto em Moisés; sacrificado no cordeiro pascal; perseguido em Davi e ultrajado nos profetas.
Foi ele que se encarnou no seio da Virgem, foi suspenso na cruz, sepultado na terra e, ressuscitando dos mortos, subiu ao mais alto dos céus.
Foi ele o cordeiro que não abriu a boca, o cordeiro imolado, nascido de Maria, a bela ovelhinha; retirado do rebanho, foi levado ao matadouro, imolado à tarde e sepultado à noite; ao ser crucificado, não lhe quebraram osso algum, e ao ser sepultado, não experimentou a corrupção; mas ressuscitando dos mortos, ressuscitou também a humanidade das profundezas do sepulcro.

domingo, 14 de abril de 2019

Não vejo nesse homem crime algum!

Lc 23,18-49

Nossa leitura de hoje apresenta a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. De Rei, a condenado. De homem de bem, a malfeitor. 
A primeira coisa que saltas aos olhos é a palavra "multidão". Quantas multidões foram alimentadas? Quantas multidões curadas? Quantas multidões receberam a Palavra de Deus através das pregações de Jesus?
Hoje, "as multidões" acusaram Jesus. chamaram-no de subversivo, de que seria ele mesmo o rei, o Cristo. Assim, foi encaminhado aos poderes civis, Pilatos e os Sumos Sacerdotes, Herodes. Os "homens bons", piedosos, religiosos, observadores das leis. Mais fieis a si mesmos do que à palavra de Deus.
Pilatos não via em Jesus nenhum crime. Mas, sabia que era por inveja que os Sumos Sacerdotes o entregavam.
Jesus questionou os Sumos Sacerdotes, os "santos", naquilo que eles pensavam estar certo. Jesus mostrou a face de Deus que é Pai, misericordioso e compassivo. Que resgata o perdido, o cura o doente, anuncia a boa nova aos pobres, que vai ao encontro dos pecadores e dos publicanos. Jesus apresenta um Deus bondoso e compassivo, que não despreza nem uma de suas ovelhas. Que vê em cada um de nós, parte de seu povo amado. Criados por amor. E se somos filhos amados, devemos voltar à casa do Pai.
Os Sumos Sacerdotes se fecharam em suas leis humanas, deturparam a palavra de Deus. Criaram regras para oprimir o povo. Classificaram as pessoas entre santas e pecadoras.
Hoje fazemos memória a expressão mais cruel da mentira. Hoje fazemos memória a maior entrega de amor que um ser humano poderia dar a outras pessoas. Hoje fazemos memória ao caminho que nos leva ao Reino de Deus, e que passa pela dor, pela rejeição, pelo sofrimento, pelo desprezo. 
Vivamos a Paixão pela dor de nossas dores. Mas, hoje, podemos vislumbrar a Ressurreição no Terceiro Dia. Sabemos que a vida venceu a morte, a tortura, o desprezo. E aprendamos a valorizar todos os que lutam por justiça social em nossos tempos. Por aqueles que defendem Políticas Públicas em que os pobres possam ser libertados, os doentes curados.

sábado, 6 de abril de 2019

Toda a atividade humana deve ser purificada no mistério pascal

Da Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje, do ConcílioVaticano II (N.37-38)

(Séc.XX)

A Sagrada Escritura, confirmada pela experiência dos séculos, ensina à família humana que o progresso, grande bem para o homem, traz também consigo uma enorme tentação. De fato, quando a hierarquia de valores é alterada e o bem e o mal se misturam, os indivíduos e os grupos consideram somente seus próprios interesses e não o dos outros. Por esse motivo, o mundo deixa de ser o lugar da verdadeira fraternidade, enquanto o aumento do poder da humanidade ameaça destruir o próprio gênero humano. Se alguém pergunta como pode ser vencida essa miserável situação, os cristãos afirmam que todas as atividades humanas, quotidianamente postas em perigo pelo orgulho do homem e o amor desordenado de si mesmo, precisam ser purificadas e levadas à perfeição por meio da cruz e ressurreição de Cristo.
Redimido por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar as coisas criadas pelo próprio Deus. Com efeito, recebe-as de Deus; olha-as e respeita-as como dons vindos das mãos de Deus. Agradecendo por elas ao divino Benfeitor e usando e fruindo das criaturas em espírito de pobreza e liberdade, é introduzido na verdadeira posse do mundo, como se nada tivesse e possuísse: Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus (1Cor 3,22-23). O Verbo de Deus, por quem todas as coisas foram feitas, que se encarnou e veio habitar na terra dos homens, entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a em si. Ele nos revela que Deus é amor (1Jo 4,8) e ao mesmo tempo nos ensina que a lei fundamental da perfeição humana, e, portanto, da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor.
Aos que acreditam no amor de Deus, ele dá a certeza de que o caminho do amor está aberto a todos os homens e não é inútil o esforço para instaurar uma fraternidade universal. Adverte-nos também que esta caridade não deve ser praticada somente nas grandes ocasiões, mas, antes de tudo, nas circunstâncias ordinárias da vida. Sofrendo a morte por todos nós pecadores, ele nos ensina com o seu exemplo que devemos também carregar a cruz que a carne e o mundo impõem sobre os ombros dos que procuram a paz e a justiça.
Constituído Senhor por sua ressurreição, Cristo, a quem foi dado todo poder no céu e na terra, age nos corações dos homens pelo poder de seu Espírito. Não somente suscita o desejo do mundo futuro, mas anima, purifica e fortalece por esse desejo os propósitos generosos com que a família humana procura melhorar suas condições de vida e submeter para este fim a terra inteira.
São diversos, porém, os dons do Espírito. Enquanto chama alguns para testemunharem abertamente o desejo da morada celeste e conservarem vivo esse testemunho na família humana, chama outros para se dedicarem ao serviço terrestre dos homens e prepararem com esse ministério a matéria do reino dos céus. A todos, porém, liberta para que, renunciando ao egoísmo e empregando todas as energias terrenas em prol da vida humana, se lancem decididamente para as realidades futuras, quando a própria humanidade se tornará uma oferenda agradável a Deus.