“Jesus acolheu as multidões, falava-lhes do
Reino de Deus e curava todos os que precisavam” (v. 11)
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
O dia de “Corpus
Christi”, tradicionalmente celebrado na quinta-feira depois da Trindade, é
festa do Deus feito carne e sangue humano, é festa cristã da humanidade de
Deus, da divindade do ser humano.
Esta festa revela mil riquezas que deveriam ser
realçadas no diálogo com a humanidade, afinal, o Corpo de Deus é, por Cristo, o
ser humano inteiro, a humanidade completa; é festa cristã, mas que quer ser
universal, a festa de todos aqueles que desejam vincular-se entre si, de um
modo concreto, partilhando o pão, bebendo juntos o vinho da vida, em alegria e
esperança, dispostos a colocar suas vidas a serviço da vida.
Festa do Corpo de Jesus e de todos os corpos; festa do pão e
do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande
organismo vivento; o Universo, com suas estrelas e galáxias, é um corpo imenso.
Corpo sagrado, porque habitado pela presença divina.
Celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e vulnerável!
Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão
de nossas modas e medos! Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem
explorá-los! Sintamos como próprio o corpo do faminto, do violentado, do
refugiado, da mulher violada, maltratada, assassinada... É nosso corpo; é o
Corpo de Jesus; é o Corpo de Deus.
O corpo humano está, portanto, no centro
da revelação cristã, pois se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na
Encarnação de seu Filho Jesus Cristo, que se faz corpo humano e habita entre
nós. Este gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata
para sempre, já que a divindade abraça a carne, acolhendo sua fragilidade para
dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um Corpo que sente, que vibra, que tem
prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome
e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e
morte, sendo sepultado entre as trevas da terra como toda criatura.
Frente a um contexto social e político que faz opção clara
em favor da morte, os(as) seguidores(as) de Jesus proclamam em alta voz seu
compromisso em favor da vida. É uma incoerência tremenda realçar o espírito da
festa de Corpus Christi quando corpos são violentados, multidões são expostas à
fome e miséria, pessoas e grupos são excluídos por preconceito, intolerância...
Sim, “Corpo de Deus”! Deus é como o
pulsar íntimo, a energia originária, a criatividade inesgotável, a
possibilidade infinita, a força do bem, a comunhão universal, a Presença plena
em cada ser humano, numa eterna evolução; Deus é infinitamente “mais” que a soma
de todos os corpos que compõem a humanidade. Somos n’Ele. Ele é em nós,
infinitamente mais que um Tu separado. Toma corpo no trigo que se transforma em
pão ou na vinha que floresce nos campos e se transforma em vinho; corpo que se
faz alimento e alegra o coração, na promessa de nos re-conduzir às entranhas do
amor do mesmo Deus.
Jesus fez
do universo seu corpo e se faz pão e vinho para nós.
O pão
suscita e cria Corpo…; Jesus não anuncia uma verdade abstrata, separada da
vida, uma pura lei social, princípio religioso... Ao contrário, Jesus, Messias
de Deus, é corpo, isto, é, vida expandida, sentida, compar-tilhada. O Evangelho
nos situa desta forma no nível da corporalidade próxima: Jesus é corpo que
quebra distâncias, acolhe o diferente e cria comunhão. Podemos dizer que Jesus
desencadeia um “movimento corporal humanizador”; por isso, Ele se faz alimento
que a todos sustenta, criando uma comunhão corpórea universal, pois ninguém
está excluído.
Sabemos que o corpo
é identidade e comunhão, individualidade e comunicação, a vida inteira
alimentada pelo pão. A antropologia de
Jesus não é dualista, que separa corpo e alma. A festa do Pão divino está nos
revelando que corpo não é aquilo que se opõe à alma, exterioridade da pessoa,
mas pessoa e vida inteira.
Corpo é o mesmo ser humano enquanto comunicação e
crescimento, exigência de alimento e possibilidade de morte: fragilidade e
grandeza de alguém que pode viver o encontro com o outro, partilhando sua vida
e suas energias, criando assim um “corpo” mais alto (comunhão) com todos.
Nesse
sentido, a Eucaristia se revela como
centro da vivência cristã. A transformação das relações humanas se dá através do
partir o pão e do passar o cálice de vinho; como o pão é um, comer desse pão nos faz todos um. A Eucaristia faz de
todos nós Corpo de Cristo. Daí o
interesse da primitiva Igreja em que, na Eucaristia, todos comungassem do mesmo
pão partido, com a finalidade de fazer visível essa unidade de todos.
Ao dizer “tomai e comei, isto é meu corpo”, Jesus
vem ao nosso encontro como alimento; não vive para impor-se sobre os outros ou
explorá-los, mas, pelo contrário, para oferecer sua vida em forma de alimento,
a fim de que todos se alimentem e cresçam com Sua vida.
Tudo isto
se expressa e se oferece em contexto de refeição
entre amigos(as): não exige
obediência, não impõe sua verdade, não se eleva acima dos outros, mas, em gesto
de solidariedade suprema, se atreve a oferecer-lhes seu próprio corpo,
convidando-os a partilhar o pão. Este oferecimento de Jesus só tem sentido para
aqueles que interpretam o corpo messiânico, como fonte de humanidade dialogal,
gratuita, expansiva...
Assim fizeram seus(suas) seguidores(as): após a Ressurreição,
Jesus foi “reconhecido ao partir o pão”; foi reconhecido não porque
estava no templo ou ensinava na sinagoga, mas porque partia o pão nas casas.
Por isso, no primeiro dia da semana, reuniam-se todos nas
casas, oravam juntos, recordavam a mensagem de Jesus, comiam o pão, bebiam o
vinho e a Vida ressuscitava. A isso chamavam, ‘ceia do Senhor” ou “fração
do pão”. Tudo era muito simples
e despojado.
Segundo os relatos dos Evangelhos, durante sua
vida pública, Jesus transitou por muitas refeições, propôs a grande mesa da
inclusão e, para culminar, organizou com seus amigos mais próximos uma ceia de
despe-dida e de esperança. Ali, ao partir o pão e passar o cálice, pediu que se
recordasse dele toda vez que comes-sem ou bebessem juntos, reavivando a
esperança de construir o mundo que todos esperavam. Eles se transfigurariam e o
mundo se transformaria em Comunhão toda vez que este gesto fosse repetido.
Para isso, é preciso recuperar o lugar e o sentido da Eucaristia, para que não seja um rito
puramente cultual. Para muitos cristãos, ela não é mais que uma obrigação e um
peso que, se pudessem, tirariam de cima deles. A Eucaristia acabou se
convertendo em uma cerimônia rotineira, que demonstra a falta absoluta de
convicção e compromisso. A Eucaristia era, para as primeiras comunidades
cristãs, o ato mais subversivo que podemos imaginar. Os cristãos que a
celebravam se sentiam comprometidos a viver o que o sacramento significava.
Eram conscientes de que recordavam o que Jesus tinha sido durante sua vida e se
comprome-tiam a viver como Ele viveu.
Séculos depois, a simples refeição foi se complicando.
A casa se converteu em templo, a refeição em “sacrifício”, a mesa em altar, o
convite em obrigação, o rito em pompa, a partilha em exclusão...
A festa de “Corpus
Christi” pode ser ocasião privilegiada para voltarmos ao mais simples e
pleno, para além dos cânones, rubricas e indumentárias que não tem nada a ver
com Jesus.
Basta nos reunir em um lugar qualquer, para recordar Jesus,
compartilhar sua palavra, tomar o pão e o vinho, ressuscitar a esperança e
alimentar o sonho do Reino.
Essa é a Missa
verdadeira, a verdadeira missão.
Texto
bíblico: Lc 9,11-17
Na oração:
Na su a
comunidade, a celebração eucarística geramaior amor e compromisso em
favor dos mais pobres ou se limita a ser um simples rito religioso obrigatório?
- Quais iniciativas concretas sua
comunidade poderia fazer para que a participação na Eucaristia seja mais ativa
e dinâmica?
- Sendo constituída por seguidores(as) de
Jesus, como sua comunidade poderia se comprometer mais para levar aos outros o
pão cotidiano, o pão do amor e da esperança, o pão do evangelho do Reino?
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