segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Homilia para a MISSA DOS QUILOMBOS - Dom José Maria Pires - Arcebispo (emérito) da Paraíba

Na noite de domingo, doa 27/08/2017, faleceu Dom José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba. Homem de Deus. Um clérigo de luta. Sempre esteve atento aos sofrimentos do povo brasileiro, especialmente dos mais pobres, dos negros, dos índios, das mulheres em situação de prostituição, dos sem terras, dos sem teto. 
Sempre buscou aliar fé e vida. A transformação social era vista por ele como uma exigência do evangelho de Jesus Cristo. 
Tal como Jesus, foi um libertador. Procurou dar vista aos cegos, fazer com que os paralisados socialmente andassem, alimentou os famintos, evangelizou os pobres.
Reproduzo a seguir, sua homilia proferida na Missa dos Quilombos, que foi realizada em 1981 em Recife.

Pretos, meus irmãos: 
Estamos recolhendo, hoje e aqui, os frutos do sangue de Zumbi, símbolo da resistência de nossos antepassados. Eles foram trazidos à força da África para estas terras, arrancados de sua Pátria, separados de seu povo e de sua família, misturados com pretos de outras línguas e de outros costumes. Violentaram-lhes a consciência, impuseram-lhes uma religião que não escolheram. Até o nome lhes roubaram e os chamaram por nomes destituídos de significado para eles. 
Estamos presenciando hoje e aqui os sinais de uma nova aurora que vem despertar a Igreja de Jesus Cristo. No passado, ela não se mostrou suficientemente solidária com a causa dos escravos. Não condenou a escravidão do negro, não denunciou as torturas de escravos, não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los e destruí-los. A Igreja não estava com os negros e hoje parece que começa a estar. Começa a nos querer bem. A respeitar nossa cultura e a não tratá-la mais como grosseira superstição. A Igreja começa a ficar de nosso lado, a nos ajudar a ressuscitar nossa memória histórica, a incentivar nossa organização.
Pretos, meus irmãos! Como nossos antepassados, viemos de vários lugares. Diferentes deles e menos puros do que eles, trazemos na pele colorações variadas. Na alma, crenças diferentes. Mas neles e em nós estão presentes e são indeléveis as marcas de negritude. Somos negros e não nos envergonhamos, não queremos mais nos envergonhar de sê-lo. 
Brancos, nossos amigos! Conosco vos reunis. Descendentes embora dos que humilharam e torturaram nossa raça, viestes hoje nos aplaudir. Não sendo negros, vos mostrais solidários com nossa causa e não quereis ver prolongadas em nós as consequências nefastas da escravidão que oprimiu nossos avós. 
Neste encontro histórico, faltam muitos irmãos negros que, levando ainda vida de escravos, não puderam compartilhar dessa celebração da liberdade. E faltam descendentes daqueles que reduziram nossa gente ao cativeiro. Eles não acreditam que os negros, enquanto tais, são os mais marginalizados no Brasil.  Veem nosso encontro como uma espécie de provocação ou uma demonstração de racismo que, segundo eles, não existe nem deve ser despertado entre nós, como um gesto de conteúdo mais ideológico e político do que evangélico e religioso. Somos gratos aos que, sem serem negros, se mostram partidários de nossa causa; lamentamos que alguns não vejam em nossa movimentação um sinal de que "a Boa-Nova está sendo anunciada aos pobres" (Lc 4.18), mas asseguramos que não iremos retroceder em nossa caminhada pelo fato de alguns nos interpretarem mal. 
Mais longa do que a servidão do Egito, mais dura do que o cativeiro da Babilônia foi a escravidão do negro no Brasil. 
Podemos entender — aceitar não — a escravidão como consequência de uma guerra ou em pagamento de uma dívida. Só mesmo um total desrespeito à pessoa humana associado à torpe ambição do lucro pode levar homens a transformar outros homens em propriedade sua a fim de explorá-los, igualando-os a animais de carga. No Egito como na Babilônia, os hebreus foram submetidos a dura servidão. Puderam, entretanto, conservar sua consciência de povo e a dignidade de pessoa. O africano, ao invés, foi desenraizado de seu meio e separado propositalmente de sua gente e de sua família. Foi reduzido à condição de um objeto que se pode vender, se pode dar, trocar ou destruir. Do escravo se exigia o máximo de produção com o mínimo de despesa. Não havia preocupação com sua saúde ou alimentação. A média de vida dos cativos era baixíssima. Castigos os mais humilhantes e severos eram infligidos por qualquer ato de desobediência ou gesto de rebeldia. Submissão absoluta, aniquilamento de si, renúncia total à própria vontade tornaram-se para os escravos condição de sobrevivência. Leis houve e não poucas, destinadas a coibir os excessos nos maus tratos aos cativos. Ficaram, porém, letra morta pois era o próprio sistema que legitimava a escravidão. A Igreja, por sua vez, a aceitou sem maior relutância e procurou justificá-la com a teoria do mal que vem para bem: se os negros perdiam a liberdade do corpo, em compensação, ganhavam a da alma e se incorporavam à civilização cristã abandonando o paganismo. Bela Teologia!
Hoje não falta quem condene a Teologia da Libertação — também chamada do Cativeiro — que justifica e incentiva, à luz da Palavra de Deus, os esforços dos oprimidos para se livrarem da marginalização a que foram reduzidos. Essa empreitada a que metem ombros tantos dos nossos melhores teólogos é certamente simpática, humana e conforme com a mente de Deus, características que não podem ser invocadas em favor da pretensão de legitimar com a Bíblia qualquer tipo de escravidão. Houvesse a Igreja da época marcado presença mais na senzala do que na casa-grande, mais nos quilombos do que nas cortes, outros teriam sido os rumos da História do Brasil desde os seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao nosso desenvolvimento porque, mesmo desenraizado de seu povo e de sua terra, mesmo reduzido ao cativeiro e sujeito a jornadas de até 18 horas de trabalho, conservou em si forças de aglutinação e de preservação de seus valores originais. Estas forças foram principalmente a religião e a combatividade. 
Obrigado a abandonar suas divindades e a trocar de nome no "Batismo", o negro soube fazer a síntese do antigo com o novo: aceitou a religião de seus opressores transformando-a por vezes em símbolo de crença de seus antepassados. As imagens de santos tornaram-se as materializações de seus orixás. Nossa Senhora da Conceição é Iemanjá, São Jorge é Ogum, Santa Bárbara, Iansã... Por mais alienadas e alienantes que pudessem parecer essas formas populares de devoção, foram elas que proporcionaram a muitos escravos africanos o meio de comunicação que lhes permitiu conservar valores que, de outro modo, teriam sido tragados na voragem do cruel cativeiro. Nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário para os Homens Pretos, no candomblé ou no xangô, a religião ofereceu aos escravos um espaço de liberdade onde, pelo menos enquanto durava o ato religioso, eles podiam sentir-se eles mesmos e recuperar a dimensão de pessoa humana.
A combatividade de nossos antepassados pareceu ter-se apagado no coração da maioria. O escravo mostrava-se conformado e submisso. Chegou a colaborar com seu opressor. A afeiçoar-se a ele. Essas atitudes, porém, podiam ser interpretadas como um expediente da natureza humana em busca da sobrevivência. No fundo, mesmo adormecido, permanecia vivo o sentimento de altivez que se rebelava contra a escravidão e buscava formas de expressar a revolta. Não foram poucos os casos em que escravos mataram feitores ou eliminaram senhores cruéis. A rebelião teve também sua manifestação coletiva, mais organizada e, por isso mesmo, mais eficaz. Foram os quilombos. A estas verdadeiras comunidades de escravos fugidos se uniam frequentemente índios que viviam situação parecida e até alguns brancos, vítimas, eles também, da exploração. 
Pela sua extensão territorial, pela sua organização social e política e pela sua longa duração, o Quilombo dos Palmares foi o mais importante de quantos existiram entre nós. Os quilombos jamais constituíram um perigo para as cidades, as povoações, os engenhos ou fazendas. Os negros fugidos procuravam terras até então inabitadas e desconhecidas, ai se instalavam, organizavam a produção de modo a se tornarem o mais possível autossuficientes e acolhiam outros negros que buscavam refúgio e liberdade no quilombo. Não se tem notícia de ataques feitos por quilombos contra as povoações. Não há vestígio de organização militar entre eles a não ser em Palmares quando tiveram necessidade de se defenderem. No entanto os quilombos foram severamente perseguidos. Temia-se que essa organização rudimentar de negros se tornasse cada vez mais poderosa e infligisse um golpe de morte na escravidão, o que viria prejudicar os interesses econômicos da classe dominante. E, como sempre, a polícia foi acionada contra humildes escravos. As forças militares receberam a incumbência de destruir os quilombos, apoderar-se das lavouras feitas pelos quilombos, prendê-los e reconduzi-los ao cativeiro ou exterminá-los. Muito sangue correu, muita esperança se afogou. 
Tudo em vão ou terá havido algum proveito? 
Chegou o tempo de tanto sangue ser semente, de tanta semente germinar.
Está sendo longa a espera, meus irmãos. Da morte de Zumbi até nós são decorridos já quase três séculos. Mas a terra conservou o sangue de nossos mártires. Este sangue fala, clama e seu clamor começa a ser ouvido. Primeiro por nós negros que estamos recuperando nossa  identidade e começando a nos orgulhar do que somos e do que foram nossos antepassados. A sociedade também escuta esse clamor. Muitos do seio dela nos apoiam e se colocam ao nosso lado para caminharmos juntos. A viagem é longa e penosa. Quase tudo está por fazer. O negro como negro continua marginalizado. Não existe em grau de embaixador, em posto de general, em função de Ministro de Estado. Na própria Igreja, são tão poucas as exceções que não abalam a tranquilidade do preconceito racial. 
Tomar consciência do problema de negros que gostariam de ser ou ao menos de parecer brancos e de brancos que negam que haja racismo no Brasil já é um passo importante nessa caminhada. Na Eucaristia que estamos celebrando, negros e brancos se encontram não como escravos e senhores, mas feitos irmãos no mesmo Cristo que a todos resgatou da escravidão do pecado. Aqui, descendentes dos que humilharam nossos pais se humilham e pedem perdão enquanto nós, acolhendo-os no abraço da paz, renunciamos a todo tipo de revanchismo e protestamos não admitir que ódio e violência se instalem em nossos corações. Se, no início, ouvimos as lamentações do Profeta Jeremias, ouvimos depois, no Evangelho, as palavras de conforto e as promessas da esperança. Que tudo isso que estamos celebrando impregne nossas vidas e invada as relações sociais para que de verdade se realize hoje o que, nos tempos do Apóstolo Paulo, já começava a ser a maneira de viver dos discípulos de Cristo: "Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gl 3.20).
Em Recife, 22 de novembro de 1981.
(Fonte: http://www.koinonia.org.br/protestantes/uploads/novidades/Tempo-e-Presenca_173.pdf)

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